Amyr Klink: Tenho uma paixão pelos barcos regionais
Trinta anos depois da expedição marítima em que atravessou o Atlântico Sul a remo – até hoje a única -, o navegador Amyr Klink comemora a façanha com uma série de eventos que começou na terça-feira, em São Paulo (SP), na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, com uma palestra aberta ao público. A partir deste domingo, 7, começa a exposição Linha d’Água, que fica até 2 de outubro no Espaço Cultural Conjunto Nacional, em São Paulo. Em entrevista, ele fala sobre a relação que desenvolveu com a navegação brasileira e relembra momentos marcantes da chegada ao Brasil, que aconteceu justamente em Salvador após 100 dias em alto-mar.
Passados 30 anos, a sua travessia continua repercutindo. A expedição continua sendo um projeto atual?
Minha mulher achou engraçado que, depois de 30 anos, a gente ainda continue envolvido com a mesma atividade. Uma travessia interessante, porque na época havia várias travessias do Atlântico Norte e a maioria delas tinha sido malsucedida por barco a remo. O fato engraçado é que eu me perguntava o tempo todo o que poderia levar alguém a fazer uma coisa tão imbecil. É curioso, porque eu achava que essa era uma ideia imbecil e não mudei de ideia.
Você imaginava que o projeto faria tanto sucesso?
Não, porque pouca gente acreditava que isso seria possível antes de eu começar. Mas essa travessia teve uma repercussão considerável na época, na Bahia principalmente. Na África do Sul também, especialmente porque lá havia vários navegadores experientes que duvidavam que eu pudesse ter sucesso. Eu desconhecia que já tinha havido três tentativas anteriores à minha no Atlântico Sul e os três protagonistas desapareceram. As autoridades sul-africanas incorreram num custo enorme para tentar localizar os remadores. Eu só soube quando cheguei lá com o barco na mala.
Você apareceu na Praia da Espera, em Guarajuba, e desembarcou em Salvador. Como foi a chegada?
Cheguei no dia 18 de setembro a Salvador. Foi uma situação engraçada, porque quando cheguei tinha um monte de jornalistas e fotógrafos me esperando. Não entendi nada. Dias antes de eu chegar a imprensa ficou sabendo e resolveu me encontrar ainda no mar, mandando helicóptero e tudo. Eu cheguei a ver o helicóptero, mas a tripulação não me viu e a manchete do dia seguinte foi “Navegador não é encontrado, mas baleia é vista próxima à praia”. Imagino a cara da minha mãe ao ler isso!
E o desembarque?
Eu lembro que o Mercado Modelo tinha pegado fogo, as paredes estavam todas pretas. Isso me marcou, tinha um monte de gente pendurada olhando o Mercado e eu lá, chegando. Lembro muito da reportagem do A TARDE, que me chamou para uma entrevista assim que saí do barco. Eu fui do jeito que estava, falei, tirei fotos e só depois que eu percebi que tinha um peixe voador grudado no meu cabelo.
Qual foi a diferença entre o Amyr Klink que embarcou no porto da Namíbia e o que chegou a Salvador?
Eu estava bem mais magro. Estava mais gordinho quando embarquei e perdi 25 kg ao longo desses três meses. Acho que, do meu peso normal, a diferença ficou de uns 17 ou 18 kg. Estava desidratado, apesar de ter levado bastante água e ainda ter 1,5 litro no barco, e muito mais bronzeado também. Nem tinha levado protetor solar. Não precisou, não tive queimaduras. Na época, a incidência dos raios solares não era tão violenta quanto é hoje.
Como foi que você escolheu a Namíbia e a Bahia para o itinerário?
Foi uma decisão puramente técnica. Eu estudei as correntes marítimas, as mesmas, aliás, que os portugueses usavam no século XV. E elas fazem uma lógica extraordinária. Quando saí era inverno, os ventos da Costa dos Diamantes apontam mais para o meio do Atlântico, o que diminuía as chances de “ser jogado de volta” para a África por uma tempestade. Os portugueses perceberam que não podiam chegar nas Índias sem ter que contornar o anticiclone do Atlântico Sul, o que os levou até a América. Os portugueses descobriram que as correntes são circulares, a do Atlântico Norte segue no sentido horário, a do Atlântico Sul no sentido anti-horário. Tem um ponto no litoral do Brasil, no Nordeste, corrente transoceânica, se divide e volta a subir. Assim, eu acabei decidindo fazer meu trajeto respeitando essa curva, que termina no Nordeste brasileiro. Elaborei uma faixa na qual eu tinha que me manter. Saí no sul dessa faixa, me mantive no norte e consegui inverter para o sul de novo, que foi quando cheguei a Salvador. E foi assim que elegi Luderitz como ponto de partida e Salvador como o de chegada.
Você teve ajuda para idealizar seu barco?
Eu era um admirador muito grande do projetista naval Horácio Caravelle, e fui procurá-lo em Santa Catarina para que ele me ajudasse a construir meu barquinho. Fui lá com um projeto debaixo do braço, saltei do ônibus às 7h30 e ele me perguntou o que era aquilo. “Cadê o mastro?”, e eu respondi: “Não tem mastro”. “Cadê o motor?”, eu respondi que não tinha, era a remo. Ele olhou para mim, enrolou o canudo e me disse: “Aqui é um lugar de gente séria, pode ir embora”. Nunca me arrependi tanto em não ter dado um soco na cara de alguém.
Como você chegou ao projeto final?
Eu resolvi construir o barco sozinho, mesmo não sendo engenheiro nem, na época, navegador profissional. Durante a construção vi que seria impossível cruzar o Atlântico, em que o mau tempo podia fazer com que as ondas chegassem a 20 metros, em um barco cuja distância do mar eram alguns centímetros, sem que ele virasse. Por isso fiz um barco “capotável”, que pudesse virar e desvirar quantas vezes fosse, sem problemas. Deu certo.
O que mudou em sua vida com a navegação?
Comecei a perceber uma singularidade no Brasil, que eram as embarcações regionais. Os barcos baianos, os de Pitimbu, que fica na Paraíba, os de Pernambuco, do Amapá, a singularidade das canoas do litoral do Paraná, Guaraqueçaba, no litoral catarinense, das variações de esquifes dentro da própria Baía de Ilha Grande, as diferenças da Amazônia… Me apaixonei pelo universo brasileiro de barcos regionais. Daí veio a ideia de fazer o Museu do Mar em Santa Catarina, localizado no município de São Francisco do Sul.
Muitos portos estão passando por restauração…
Uma parte importante da vocação náutica do Brasil, a dos portos, foi esquecida. O Brasil é o único país do mundo que não tem projeto de restauro e reincorporação urbana das regiões portuárias. Nós temos regiões portuárias fantásticas, como Paranaguá, portos que estavam abandonados, como o de São Francisco do Sul. Os primeiros projetos em Belém, com a estação das docas, em Porto Alegre, com a Usina do Gasômetro. Temos projetos em Salvador, que acho que estão muito aquém da capacidade da cidade. Mas nenhum desses projetos atendeu à vocação original dos portos, a de receber barcos.
Qual seria a solução?
O Brasil não atentou para uma geração de riqueza, que é o ofertamento de barcos, o charter. A primeira iniciativa aconteceu em Salvador, com o projeto de porto, com os flutuantes, pelo Centro Náutico da Bahia (Cenab), mas esse movimento não cresceu devidamente. No porto do Rio estão fazendo maravilhas, mas em nenhum capítulo você vê a concessão de projetos para a iniciativa privada. Para vocês terem uma ideia, um portinho na cidade de Maiorca (na Espanha), que tem 300 mil habitantes, gera por ano em prestação de serviço por locação de barco, 4,2 bilhões de euros. Só no Rio temos espaço para construir duas ou três. O turismo não atenta para a locação de barcos. Mas eu sei que essa atividade virtuosa um dia vai acontecer no Brasil.
Você fez críticas ao sistema de ensino da engenharia naval. Acha que a navegação brasileira está estagnada?
Nesta semana eu fiz um comentário sobre o curso de engenharia naval da Universidade de São Paulo [USP] que deixou todo mundo revoltado. E, infelizmente, eu não tenho como mudar nada do que eu falei. Disse que o ensino de engenharia naval na USP é pobre, é um ensino que não produziu um marco na embarcação. Acho que isso é muito triste. Eles são tão selecionados, apurados, que saem como astros da universidade e não têm conhecimento aplicado. Temos essa dificuldade brasileira em não valorizar os cursos técnicos. Eu estudei na Universidade de São Paulo, me formei em economia e conheço bem o modelo da universidade que estudei. Nós temos talentos em vários lugares, fantásticas escolas, gente muito competente que ainda não está no mercado e temos um potencial muito grande no turismo em prestação de serviço.
Fonte: A Tarde
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